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LEITURAS

O FÓSFORO NOS SOLOS DO CERRADO: DA ESCASSEZ AO EXCESSO

Autor: Antonio Teixeira

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O FÓSFORO NOS SOLOS DO CERRADO: DA ESCASSEZ AO EXCESSO

Acho essa história incrível. Enquanto eu vivia meus primeiros anos como aluno na Escola Logosófica de Belo Horizonte, Alysson Paolinelli fazia 38 viagens em um velho Jeep da ESAL – Escola Superior de Agricultura de Lavras, ora para Brasília, ora para o Rio de Janeiro. As estradas eram tão ruins que ele adquiriu uma dor na coluna vertebral que jamais o abandonou.

A escola, que era particular, passava pela maior crise de sua história e, prestes a fechar as portas, ainda contava com professores e funcionários abnegados que trabalhavam sem receber seus salários há mais de um ano. Os comerciantes da cidade de Lavras, movidos por um sentimento de solidariedade, mantiveram o crédito aberto para esses heróis, que insistiam em manter a escola funcionando. O jovem Alysson, então diretor, fez todas essas viagens com um único objetivo: a federalização da ESAL. Após negociar exaustivamente com o governo, daí as 38 viagens, ele finalmente concretizou o feito em dezembro de 1963.

Alguns anos antes, um ex-jogador de futebol do Fabril, principal time de Lavras, trocou as chuteiras pelos cadernos. Ele era um zagueiro goleador e chegou a marcar os dois gols na derrota de 7 a 2 para o Santos de Pelé, em 1957. Mesmo assim, decidiu abandonar a carreira para cursar Agronomia, tornando-se professor de solos na ESAL. Seu nome era Alfredo Scheid Lopes, mais conhecido como “Alfredão”, pelos seus 1,96 m de altura.

Entramos na década de 1970. Paolinelli, já tendo sido diretor da ESAL, secretário de Agricultura de Minas Gerais e, agora, ministro da Agricultura, incentivou de forma decisiva, a criação da EPAMIG e da EMBRAPA. Ele estava empenhado em convencer o governo a enviar os melhores pesquisadores e professores ao exterior para capacitá-los em cursos de mestrado e doutorado. A ideia era que, ao voltarem, esses agrônomos fornecessem a base técnica para que o Brasil deixasse de ser um grande importador de alimentos e se tornasse um exportador.

E foi nessa onda que nosso ex-zagueiro Alfredão embarcou rumo à Carolina do Norte, nos EUA, para fazer o seu mestrado e, posteriormente, o doutorado. Ainda quando era estudante de agronomia, durante uma excursão de ônibus à Brasília, ficou maravilhado com a enorme extensão de terras do Cerrado, ainda intactas, entre Lavras e a capital federal. Teria perguntado a um professor: por que ninguém planta nada aqui?

Essa pergunta ecoou em sua mente por anos e Alfredão a levou para seu mestrado e doutorado, determinado a respondê-la. Durante a estação seca de 1973, não em um Jeep como Paolinelli, mas a bordo de um Fusca, Alfredão coletou amostras de solo de 0-15 cm de profundidade em 58 municípios do Cerrado entre Lavras e Brasília. Reuniu mais de uma tonelada de amostras, colocou-as em tambores de 200 litros e as enviou de navio para a Carolina do Norte. Ele queria descobrir as causas da “infertilidade” dos solos do Cerrado, ou o porquê de não se produzir nada nele. Seus estudos deram um “pontapé inicial” no assunto e, ao voltar dos EUA, reassumiu sua cadeira de professor em Lavras, em 1975.

Menos de três anos depois, em 1978, eu já cursava Agronomia na ESAL e tive a oportunidade de ser aluno do Alfredão e de outros grandes nomes que voltavam dos EUA e da Europa após defenderem seus doutorados. Nós, alunos, ouvíamos as novidades: “Os solos do Cerrado são pobres em nutrientes minerais, muito ácidos, com teores de alumínio tóxico para as plantas e fixam grande parte do fósforo solúvel aplicado. Então, é preciso corrigi-los e adubá-los corretamente.” A agricultura tropical finalmente ganhou corpo e o Brasil começou a exportar, em vez de importar alimentos. Começaram a dizer que a Agronomia era “a profissão do futuro”.

A partir daí, vocês sabem o que aconteceu. Com a contribuição de profissionais obstinados, produtores corajosos, muito calcário, e adubos ricos em fósforo, os Cerrados brasileiros tornaram-se a maior região produtora de alimentos do País. Saímos de 39 milhões de toneladas produzidas em 1975 para 252 milhões de toneladas de grãos em 2020, seis vezes mais.

Foi em maio de 2020 que nosso querido professor Alfredão nos deixou. Quatro meses depois, a renomada revista Nature publicou um artigo dos professores da ESALQ, Paulo Pavinato e Mauricio Cherubim, juntamente com outros colegas. O estudo abordou o “legado” deixado nos solos brasileiros após cinco décadas de aplicação de fósforo. Os cálculos foram baseados em dados de produtividade das principais culturas, compilados nos 5.563 municípios pelo SIDRA181 e pela CONAB412, além dos dados anuais de entrega de fertilizantes fosfatados por cultura, fornecidos pela ANDA10, e ainda, da exportação média de fósforos (P) por cultura obtida a partir de relatórios técnicos e referências regionais.

Alysson Paolinelli, que também nos deixou recentemente, certamente diria: “A bola da vez não é mais o fósforo, ou, o fator limitante no solo do Cerrado onde estamos plantando há décadas não é mais o fósforo”. A nova fronteira é biológica. Precisamos cuidar da vida no solo, que está sucumbindo devido ao uso excessivo de fertilizantes solúveis, agrotóxicos e compactação.

De fato, se por um lado os adubos solúveis viabilizaram a produção no Cerrado, por outro, percebemos que o uso excessivo degrada o solo. De acordo com Ana Primavesi1 “os solos tropicais precisam ser “pobres”, para que as plantas consigam absorver água e nutrientes, durante as horas de maior calor. Do contrário, elas perderiam a água pelas suas raízes, por conta do diferencial osmótico com o solo. Esse solo precisa do Ferro e do Alumínio, para ser agregado, e assim permitir a penetração de água e especialmente o desenvolvimento de um amplo sistema radicular.”

Uma observação importante é que a concentração de nutrientes expressa nas análises não considera nem a profundidade do solo, nem o alcance e a efetividade das raízes das culturas. Isso muda tudo! Segundo Primavesi, “nos trópicos, não é muito nutriente mineral acumulado em pouco volume de solo que trará maior produção, mas sim a quantidade de solo que estará à disposição das raízes.” Portanto, precisamos trabalhar para ter solos vivos e agregados, onde as raízes possam se desenvolver. Quanto à adubação, o ideal é que não seja solúvel de imediato. Se for necessário utilizar hidrossolúveis, a quantidade deve ser modesta, preferindo os termais aos acidulados.

Quero compartilhar meu depoimento, baseado em observações práticas durante os últimos 15 anos de consultoria em mais de 200 fazendas espalhadas pelo Cerrado brasileiro. Adubações pesadas de fertilizantes fosfatados hidrossolúveis, em solos já cultivados, não aumentam a produção. Ao contrário, podem gerar problemas, como inibir a colonização micorrízica das raízes (o que é gravíssimo), provocar deficiência de zinco nas lavouras e, em alguns casos, até mesmo eutrofizar águas devido ao escorrimento do excesso.

Para o estágio atual desses solos, uma estratégia eficaz para o fósforo é utilizar fertilizantes fosfatados naturais ou remineralizadores que contenham fósforo com menor grau de hidrosolubilidade, juntamente com adubação orgânica bioestabilizada, na forma de composto orgânico de alta qualidade de fermentação.

O uso dessas rochas, que estão presentes no território nacional, além de ser a melhor estratégia, traz mais dois grandes benefícios. O primeiro é uma enorme redução na pegada de carbono desses fertilizantes quando comparados aos acidulados, considerando a logística e o processo de fabricação. O segundo é a diminuição da exposição dos produtores rurais às oscilações do dólar e à instabilidade política dos países produtores desses adubos, já que 60% destes são importados.

Por outro lado, devemos adotar estratégias para acessar o grande banco de fósforo que formamos no solo do Cerrado e que nossos professores diziam ser “indisponível”. Neste sentido, e ainda de acordo com o artigo da Nature, algumas dentre as mais promissoras, são:

1. Aumento do pH do solo pela calagem, que aumenta as hidroxilas (HO−) na solução do solo e, consequentemente, aumenta a disponibilidade de P por competir pelos grupos funcionais de adsorção da fase sólida;

2. Melhoramento de culturas buscando variedades com mecanismos adaptativos para acessar o legado de solo anteriormente inexplorável P, tais como maior relação raiz: parte aérea, morfologia radicular alterada (maior presença de pelos, raio radicular e formação de cachos), exsudação de compostos químicos para a rizosfera e associação de raízes com micorriza;

3. Inoculação da cultura com microrganismos solubilizadores de P;

4. Introdução de culturas de cobertura eficientes em termos de P no sistema, por exemplo, espécies de capim-ruzigrama (Urochloa spp.);

5. Utilização de uma agricultura mais intensiva, com sistemas de cultivo duplo ou consorciado;

6. Melhoria das condições do solo (químicas, físicas e biológicas) para potencializar o crescimento radicular para exploração/absorção de P em grande volume de solo.

Concluímos que a história da produção agrícola nos solos do Cerrado brasileiro entra agora em uma nova fase, após as contribuições de pioneiros como Alysson (Paolinelli) e Alfredo (Scheid Lopes). Diante dos sinais inequívocos de degradação provocados pelo uso excessivo de substâncias prejudiciais à vida, como os fertilizantes hidrossolúveis e os agrotóxicos, estamos entrando na fase de regeneração dos solos.

Finalmente, compreendemos que os solos tropicais vivem de fluxos, não de estoques inertes. Para isso, é preciso haver movimento; e movimento precisa de vida em abundância e diversidade. Precisa de fluxo e refluxo, de construção (fotossíntese) e decomposição da fitomassa (biota edáfica). Vida sucedendo vida, no tempo e no espaço, no eterno movimento da espiral positiva que transforma e governa todo o universo!

Antonio N. S. Teixeira

Fundador da Libertas Consultoria

Antonio Teixeira